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​Saindo do armário: Como a literatura LGBTQIAP+ tem crescido na atualidade

Autores que tiveram sua pluralidade negada hoje mostram em estórias a beleza da diversidade

Por: Maria Clara Morais Sousa

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Caio Fernando Abreu, Cassandra Rios, Adolfo Caminha e Ferreira Leal são nomes da literatura de temática LGBTQIAP+ brasileira. Assim como muitos outros, são nomes quase apagados de sua identidade, Cassandra Rios foi censurada na época da Ditadura Militar apenas por expressar seu amor por mulheres em seus livros. Muitos pensam que a LGBTfobia já está atrás de nós, mas se olharmos para a literatura atual encontraríamos representatividade o bastante para provar esse argumento?

Passando os olhos pela nossa sociedade não é difícil notar as claras desigualdades sociais atreladas aos que não são heterossexuais – pessoas que se atraem pelo gênero oposto – e cisgêneras – pessoas que se identificam com o gênero que lhe foi dado no nascimento – em comparação com a comunidade LGBTQIAP+. Discriminação, olhares tortos, invisibilidade na política e parte da cultura (TV, séries, livros, filmes) podem escalar para espancamentos, assassinados e outros crimes de ódio.

Embora o progresso já exista e algumas pessoas já se aproveitem dele, ele não chegou para todos. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) em 2020 foram assassinadas 175 pessoas trans sendo a idade média delas de 29,5 anos e o Grupo Gay Bahia relata que em 2019 o número de pessoas LGBTQIAP+ assassinadas foram 297, sendo que 50,2% deles eram pretos e pardos.

De invisíveis para a sociedade até invisíveis para a literatura, autores de estórias LGBTQIAP+ estão ganhando mais espaço enquanto o público exige mais representatividade para suas próprias identidades de gênero e orientações sexuais. No resumo do livro “Ela, videogames e muito sobre nós” do escritor brasileiro Koda Gabriel está escrito que “Todo mundo precisa de um clichê para se sentir representado” e o cenário parece estar se adaptando para essa frase.

A diversidade
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Infográfico com definições das siglas LGBTQIAP+

​Sua história te dá força

Antes mesmo de Stonewall (revolta que marcou a história do movimento LGBTQIAP+), no Brasil, Ferreira Leal escreveu “Um homem gasto” - estória sobre um homem gay que se casa mas só consegue ter relações sexuais com sua esposa usando drogas - o naturalista não ganhou fama ou reconhecimento e atualmente suas obras são pouco conhecidas. Identidades apagadas ou obras desmerecidas é uma escolha difícil para quem só vive de literatura, por isso escritores como Álvares de Azevedo, Mário de Andrade e Gilberto Freyre mantinham sua orientação sexual em discrição, assim a história manteve.

Já na época de Ditadura Militar, Odette Pérez Ríos sob o pseudônimo de Cassandra Rios escreveu diversas obras eróticas sobre mulheres que se relacionavam com mulheres. Devido a isso sofreu censura (além da perseguição e ameaça) do governo militar, dessa forma a história se esqueceu.

Seja por apagamento dos que tiveram coragem de continuar escrevendo ou dos que nunca escreveram, a história sempre deu um jeito de deixar as lutas LGBTQIAP+ de lado. Mesmo que nas escolas poucos acontecimentos que permeiam a luta de resistência dessa comunidade sejam tratados, é impossível se esquecer de Stonewall.

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Bar Stonewall Inn, em Nova York, Estados Unidos da América. Fonte: The Stonewall Inn | NicestGuyEver | Flickr

Em 28 de junho de 1969 a polícia invadiu o bar Stonewall Inn, um dos poucos lugares que recebiam pessoas LGBTQIAP+, o que resultou em manifestações e motins contra a maneira que homossexuais, drag queens, lésbicas e transexuais eram tratados na época. Homossexualidade ainda era contra a lei nos Estados Unidos e usar mais de três roupas que “não condiziam com o gênero da pessoa” podia ser considerado motivo para prisão. A rebelião de Stonewall é considerada um marco no ativismo LGBTQIAP+ e ainda é lembrado todo mês de junho (também conhecido como o mês do orgulho).

Apesar de tantos anos de luta ainda há ódio e preconceito sendo direcionado à comunidade. Em 2019, Marcelo Crivella – prefeito da cidade do Rio de Janeiro na época – tentou censurar uma história em quadrinhos que continha a imagem de dois homens se beijando e mandou fiscais para a Bienal do Livro em busca de livros “impróprios” para crianças. A justiça barrou seu ato homofóbico e protestos vieram de editoras, escritores e pessoas mostrando que o apagamento é coisa do passado (em certos casos).

Momentos como Stonewall e pessoas como Cassandra Rios podem ter sidos apagados ou remoldados, porém o legado de força e coragem deles não pode ser esquecido. Lucas Rocha, escritor de “Você tem a vida inteira”, afirma que “Nunca fomos invisíveis, por mais que tentem nos apagar da história. Acho que, mais do que isso, querem que sejamos ‘apagáveis’. Querem que nossas histórias possam ser jogadas debaixo do tapete e modeladas dentro de uma narrativa heterossexual mais palatável, seja a da ‘tia solteirona que divide apartamento com sua melhor amiga’ ou ‘o melhor amigo do meu filho’. Mas, atualmente, acredito que estamos nos manifestando mais e, dentro da minha realidade, estamos mais seguros a contar nossas histórias.”

Mercado em expansão

Com o progresso que o movimento LGBTQIAP+ trouxe para a sociedade veio também um progresso para a literatura, de forma que a representatividade e protagonismo receberam mais atenção e procura. Maria Freitas, escritora do livro “Clichês em rosa, roxo e azul” e administradora do site Cadê LGBT o qual divulga livros com protagonismo LGBTQIA+ , conta que “Já tinha um tempo que eu percebia que tinha muita gente procurando por livros LGBTQIAP+ que já existiam no mercado independente. Eu estava vendo um vídeo onde a pessoa dizia que nunca tinha encontrado um livro com protagonista bissexual homem, e eu conhecia, pelo menos, três livros assim, mas que estavam no mercado independente, sem alcance. Decidi, então, criar uma espécie de vitrine pra esses livros.”

Além do protagonismo, há uma crescente onda de procura por finais felizes em histórias LGBTQIA+. Assim como “Com amor, Simon”, livro que retrata de forma natural e simples a vivência de adolescente gay se descobrindo, outros livros têm buscado trazer um enredo mais real e que fuja da infelicidade e irrealização de filmes como “Me chame pelo seu nome”. Assim Simon diz no próprio livro “Todos merecem uma história de amor”.

Autores, principalmente do gênero young adult (traduzido jovem adulto), estão procurando trazer um personagem livre de estereótipos e baseado numa vivência real de como é ser LGBTQIA+. Lucas Rocha afirma que “São personagens que sofrem, mas também riem; que cometem erros e se desculpam; e que, algumas vezes, fazem coisas que não aprovaríamos. Acho que poder demonstrar essa complexidade, tanto das coisas boas quanto ruins, é uma forma de demonstrar que não somos vítimas nem nos resumimos a estereótipos.”

​Mas existe mesmo uma literatura temática LBTQIAP+?

A discussão sobre se livros com personagens LGBTIAP+ podem ser todos classificados em um gênero ainda é recente, mas alguns autores já têm suas opiniões formadas. Embora parte da comunidade esteja feliz por já existirem livros o bastante para ser debatido como eles serão chamados, parte dela ainda se incomoda com tramas tão complexas e diversas serem definidas apenas por um nicho.

Natália Borges Polesso, ganhadora do prêmio Jabuti com "Amora", acredita que não exista uma literatura de temática LGBTQIAP+ “Simplesmente porque não há um conjunto de elementos que nos una por um tema. Somos indivíduos e somos plurais.  Mesmo que fossem temáticas, no plural, ainda assim, creio que seria impossível.”

Felipe Cabral – dramaturgo, roteirista, dono do canal Eu Leio LGBT e autor do livro ainda não lançado “O primeiro beijo de Romeu” – gosta de usar o termo “livros com protagonismo LGBTQIAP+”. Ele explica que “Eu definiria essa literatura como um conjunto de obras onde os personagens LGBTQIAP+ são protagonistas de suas histórias e, para além da ficção, livros escritos por autores LGBTs que abordem questões da nossa comunidade.”

Já Maria Freitas salienta que um livro com temática LGBTQIAP+ tem como “tema do livro ou o principal assunto abordado ali é ser LGBTQIAP+. Mas existe uma diferença entre o livro ter temática e ele ter protagonismo LGBTQIAP+. Nem sempre um livro protagonizado por uma pessoa LGBTQIAP+ vai ter essa temática, mas não deixa de ser representativo por isso.”

​Ainda há exclusão

Seguindo dados do Projeto Além do Arco-irís do Instituto Afro Reggae apenas 0,02% das mulheres trans e travestis estão na faculdade e 72% delas não possui Ensino Médio, dessa forma se torna quase impossível elas não serem excluídas da literatura.

Regina Dalcastagnè explica em seu artigo “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004” que o padrão dos personagens de tramas literárias brasileiras é um homem branco, heterossexual, cisgênero e brasileiro, sendo que se uma dessas características é quebrada o resto irá continuar, mostrando o quão difícil é a ruptura desse padrão. Dalcastagnè ainda explica que há um percentual de 79,2% a mais de personagens gays do que de mulheres lésbicas, demostrando como é mais fácil tirar uma característica (a sexualidade) do que duas (a sexualidade e o gênero).

As discrepâncias de tratamento e igualdade também se encontram presentes na própria comunidade LGBTQIAP+. Koda Gabriel, autor de “Ela, videogames e muito sobre nós”, conta que pessoas não-bináries vivem “um constante apagamento da nossa existência, que, quando é lembrada, muitas vezes ainda é discutida e pautada no ponto de vista do outro sobre nós, e não do nosso ponto de vista sobre nós mesmos.”

Pessoas assexuais e trans são o que mais enfrentam a invisibilidade e incompreensão sobre suas vivências, sendo constantemente questionadas e silenciadas pela sociedade. Seja pelo desrespeito de nome ou pronome até apagamento da sua própria sexualidade tratando essa como “estranha” ou “bizarra” esses indivíduos ainda não chegaram no mesmo pé de igualdade e aceitação que outras pessoas na comunidade LGBTQIAP+. Felipe Cabral acredita que “o mercado e todas as representações artísticas olham muito mais para a letra G, branca.”

Bissexuais também sente o apagamento e preconceito na pele, a incompreensão de uma sexualidade que ama mais de um gênero leva a ideias errôneas sobre como uma pessoas bissexual realmente é, Maria Freitas conta que “Dentro e fora da comunidade, nossas existências são esvaziadas, nos tratam como caricaturas do que é ser bissexual, nos jogam sempre para um lugar de desumanização, de promiscuidade, de falta de compromisso, de incapacidade de dar afeto.”

O racismo estrutural é outra questão que impede uma igualdade plena entre todos os membros da comunidade LGBTQIAP+, a representatividade que traz alguém não-branco para estória ainda está escassa no mercado tradicional da literatura (editoras) mas está aumentando no mercado de publicação independente. Produções como “Miá” (Hel Macêdo), “Entre nós” (Dayane Borges) e “Ela é só uma garota comum” (Pedro A. Ribeiro) são exemplo da expansão (lenta, mas existente) da representatividade negra em estórias LGBTQIAP+.

A pluralidade encontrada na comunidade LGBTQIAP+ não cabe apenas em um livro, uma vivência, múltiplos e cheios de contribuições para a sociedade essas pessoas ainda encontram dificuldade em fazer as coisas mais simples como dar as mãos em público ou simplesmente existir. Negados de afeto, carinho, amor e vida, a comunidade tira força e coragem dos que vieram antes para continuar lutando pelos seus direitos na literatura e na sociedade.

“Não tenho dúvidas de que a literatura reflete a sociedade e, ao mesmo tempo, tem a função de fazer com que as pessoas possam refletir a realidade das páginas em suas próprias vidas. É um processo de retroalimentação. Quanto mais personagens LGBTQIAP+ tivermos, quanto mais complexos eles forem e quanto maior for o catálogo de opções para entendermos realidades diferentes, maior será nossa vitória.” afirma Lucas Rocha.

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